Na maior feira de brinquedos da América Latina, o estereótipo ‘menino x menina’ ainda impera; segundo fabricantes, facilidade de atrair meninas para os carrinhos é maior do que convencer as famílias de que os meninos podem brincar de casinha.
Motivadas pela demanda das famílias, opinião pública e tendências de mercado, as iniciativas para “apagar o gênero” dos brinquedos têm dado maior resultado na inclusão das meninas em brincadeiras historicamente atribuídas a meninos, como carrinhos e super-heróis, do que o contrário. Segundo fabricantes de brinquedos ouvidos pelo G1 na 35ª Feira Internacional de Brinquedos (Abrin), que aconteceu na semana passada em São Paulo, o maior desafio é atrair mais pais e filhos homens às brincadeiras de casinha, consideradas “coisa de menina”.
Para tentar equilibrar a expansão de todos os brinquedos para ambos os gêneros, eles apostam algumas de suas fichas em produtos unissex, caracterizados principalmente pela ausência do cor-de-rosa.
“Uma coisa que a gente sente no mercado brasileiro é que o azul está sendo aceito tanto para menino quanto para menina, mas o rosa ainda tem muita resistência com os meninos”, resumiu Samy Moas, diretor da Buba.
A fabricante, especializada em brinquedos, acessórios e artigo de decoração para bebês oferece boa parte de seus produtos em rosa e azul, incluindo o “baby phone”, um smartphone de brinquedo. Mas Moas explica que, nas linhas recém-lançadas, a empresa tentou aproveitar outras cores, como o verde e o roxo, para dar uma cara mais neutra aos itens.
Segundo ele, como precisam de cores para chamar a atenção dos pequenos, os brinquedos acabam seguindo a principal demanda de curto prazo, que ainda sustenta a tradicional divisão por gênero.
Mas fabricantes já começam a investir mais para atender o que eles consideram uma demanda reprimida: meninas que querem se ver representadas em situações mais aventureiras e, principalmente, mães e pais que querem ensinar seus filhos meninos a cuidar da casa, para que se tornem adultos independentes e maridos melhores.
Nova demanda dos consumidores
Um passeio pelos estandes do evento, que acontece no Expo Center Norte, na Zona Norte da cidade, mostra diversas alternativas de brinquedos que fogem dos estereótipos, embora elas ainda representem uma minoria do que está sendo oferecido aos visitantes e compradores.
Maior feira de brinquedos da América Latina, a Abrin neste ano tem 130 expositores e espera um público de 15 mil pessoas do setor. Renato Pereira é um deles. Diretor da Zuca Toys, uma fábrica que fica em Itatiba (SP), ele vende brinquedos populares e começou a fabricar kits de cozinha há 15 anos. “Naquela época todo mundo fazia assim, rosa. Está meio que no inconsciente da gente”, explicou ele. Para não ficar monocromático, a escolha era sempre acompanhar o rosa com o lilás para esses jogos, classificados como “reprodução do mundo real”.
Foi só em 2015 que a fábrica decidiu lançar seus primeiros jogos de cozinha com cores diferentes, visando o público masculino. A reação foi para ouvir alguns pedidos que apareciam de mães que escreviam à fábrica pelo site e acompanhar tendências.
Atualmente, a Zuca Toys oferece kits de cafeteria, utensílios para lavar louça, passar roupa, jogos de panelinha e outros itens, em jogos ou avulsos, tanto em rosa quanto em outras opções, principalmente em vermelho. Em três anos, Pereira afirmou que os kits neutros já respondem por 20% das vendas.
Moda gourmet
Além de pedidos motivados pela igualdade de gênero, Pereira cita outra tendência que abriu as portas para brinquedos de casinha voltados para meninos: a moda gourmet. “Em 2017 lançamos nossa linha chef, não é só para atender meninos e meninas, é também por causa da moda gourmet e dos programas de gastronomia”, explicou ele.
Tamara Campos, gerente de marketing da Xalingo Brinquedos, seguiu pelo mesmo caminho quando lançou, em 2016, uma linha com cozinha e refrigerador com cores vermelha, preta e cinza e imagens de um menino brincando ao lado de uma menina na caixa.
Segundo ela, a maior identificação de homens com a culinária dos programas de gastronomia, além da preocupação cada vez maior de comida saudável, foram ganchos usados pela fabricante para aproveitar o interesse e lançar a nova linha.
A gerente diz que o paradigma de que deve existir uma separação por gênero dos brinquedos começou a apresentar brechas depois da animação “Frozen“, lançada em 2013 e que bateu recordes históricos de bilheteria e faturou o Oscar de melhor animação e de melhor canção original.
Além das cores, Tamara explica que a Xalingo tenta também apagar a divisão de gênero de outras partes dos brinquedos, como os nomes envolvendo palavras mais ou menos marcadas para meninos ou meninas. E também busca incluir atividades voltadas à ciência e aos esportes em outros brinquedos lúdicos, como blocos de montar.
Para Andrea Ghiraldi, diretora da Anjo Brinquedos, de Laranjal Paulista (SP), a “moda” das bonecas que não vestem rosa também acompanharam uma tendência recente no Brasil, de embalagens mais “clean”, que já é mais antiga na Europa.
“Há alguns anos existia resistência dos compradores”, disse ela sobre bonecas azuis para meninas. “Não era nem azul nem rosa, era totalmente colorida.”
Segundo ela, por volta de 2010 a tendência europeia era usar menos cores nas embalagens, e a Anjo arriscou seguir nessa onda. “Nós lançamos e depois recuamos. Optamos por retroceder no produto mais popular, nos brinquedos mais voltados para as classes A e B não”, disse ela, sobre a baixa adesão dos lojistas. Agora, a empresa já oferece bonecas genéricas tanto nas cores rosas quanto apenas em azul, na embalagem e no vestido.
Bruno Coimbra, gerente comercial da Global Fantasias, confirma que “Frozen” abriu as portas para que o universo de fantasias e brinquedos para meninas saísse da seara das princesas delicadas, mas diz também que “Moana”, a princesa guerreira, solteira, sem maquiagem e descabelada apresentada ao mundo em janeiro de 2017 e se tornou a animação mais bem sucedida da Disney no Brasil.
“A menina não encontrava uma heroína que a representava, então a Moana quebrou muito esse rótulo. Depois que lançou a linha de heroínas e PJMasks, aí foi um sucesso”, explicou Coimbra, citando os “heróis de pijama” Gato, Lagartixo e Corujita. Segundo ele, “ainda é muito mais difícil encontrar meninos vestidos de ‘Frozen’, eles escolherem essas opções”, mas a Corujita, que tem roupas vermelhas, tem sido a personagem feminina que mais atrai os meninos.
Ele afirma que o recente sucesso “Pantera Negra” da Marvel, também tem impulsionado o empoderamento das meninas – apesar de o protagonista ser um homem, sua guarda real é toda formada por mulheres.
Se no quesito representatividade de gênero há cada vez mais opções para meninas e meninos se enxergarem em novos papéis, a representatividade de raça também aparece, mas em uma minoria ainda menos expressiva dos milhares de produtos expostos na Abrin.
A maioria das fabricantes visitadas que ofereciam bonecas negras expuseram produtos criados nas variações de um modelo também disponível com a pele clara.
Segundo a Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), em 2017 quase 20% de todos os brinquedos vendidos pelo setor se encaixavam na categoria “bonecas e bonecos em geral e seus acessórios”, seguido dos “carrinhos, motos e pistas” e dos brinquedos esportivos.
Andrea Ghiraldi, da Anjo Brinquedos, explica que fazer o mesmo modelo de boneca nas versões com pele clara e escura exige dois equipamentos de mistura dos ingredientes. “Bonecas negras nós temos há muitos anos, houve uma época em que não tínhamos por questões técnicas”, explicou ela.
Ela diz, porém, que o investimento não deu prejuízos à empresa, além de garantir uma maior representatividade aos consumidores. “Tem retorno, só não existe uma grande demanda.”
Fonte: g1.globo.com